Fazenda ao prato: normas europeias que impactam o setor agropecuário brasileiro

Uma das ações importantes do Pacto Ecológico Europeu ou European Green Deal, apresentada em maio deste ano pela Comissão Europeia, é a “From Farm to Fork Strategy”, oficialmente traduzida para o português como “Estratégia Do Prado ao Prato” e, nesse artigo, denominada Estratégia da Fazenda ao Prato. Em síntese, o Pacto Ecológico Europeu é um conjunto de incentivos e obrigações que pretendem, num curto prazo (até 2024) contribuir para que a União Europeia avance no alcance da meta de neutralidade de emissões de carbono até 2050. Trata-se de um pacto geoestratégico, que permitirá à União Europeia exercer uma espécie de “pré-sanção ambiental”, impondo políticas compatíveis às do Bloco como pré-requisito para as relações comerciais com outros países.

A Estratégia da Fazenda ao Prato é considerada uma das principais políticas setoriais do Pacto Ecológico para alcance das metas climáticas. Seu objetivo é assegurar que toda a cadeia do alimento (da sua produção, transporte e distribuição ao consumo) tenha um impacto neutro ou positivo no clima e no meio ambiente. Em termos práticos, os alimentos produzidos terão que ter uma “pegada ecológica” no uso dos recursos naturais – tais como solo, água, área agricultável, ar etc. -, contribuindo para a recuperação ambiental e para o enfrentamento das mudanças climáticas.

Ou seja, a atividade agropecuária deverá estar associada a um conjunto de ações voltadas a promover um impacto positivo ou neutro nos recursos naturais – como, por exemplo, não desmatar, recuperar áreas degradadas, reduzir emissões de gases de efeito estufa, reduzir o uso de defensivos agrícolas, evitar o excesso de nutrientes, implementar ações para remoção de CO2 da atmosfera, reverter a perda de biodiversidade e das florestas.

Para que a Estratégia Da Fazenda ao Prato atinja seus objetivos, um conjunto de mais de 20 iniciativas serão lançadas até 2024, voltadas para a implementação de transformações amplas dos Estados membros da União Europeia e com efeitos imediatos nos países exportadores ao mercado Europeu. Dentre estas, a Estratégia prevê, por exemplo, um sistema de verificação de origem dos produtos, o que pode facilitar o embargo daqueles provenientes de áreas de desmatamento. A Estratégia sinaliza ainda para a criação de “um novo modelo de negócio”, referente à remoção de carbono da atmosfera por produtores rurais, remunerando-os por este serviço prestado – por exemplo, a partir da recuperação de solos e reflorestamento. Cabe ainda mencionar a iniciativa de criação de uma lei específica sobre dados das propriedades rurais, que pretende trazer transparência às práticas sustentáveis adotadas desde a produção. Propõe-se também uma profunda alteração sobre as informações em embalagens e rótulos dos produtos, para empoderar a decisão do consumidor também no que tange a aspectos sobre origem, mudanças climáticas, meio ambiente e responsabilidade social.

Como se nota, a Estratégia é abrangente, e estará sujeita a Diretivas específicas a serem expedidas pela Comissão Europeia ou aprovadas pelo Parlamento Europeu, voltadas a regulamentar, em pormenores, cada uma das iniciativas. Até aqui, a Estratégia Da Fazenda ao Prato foi bem recebida em sua fase de consulta pública – ainda que como um quadro-geral do que se almeja -, tendo recebido apoio de empresas do setor de alimentos, embalagens, química, saúde animal (tais como Bayer, Basf, Pepsico e Tetra Pak) e de associações e confederações de produtores europeus. Ao anunciar a Estratégia e dar publicidade às suas metas, a UE sinaliza as mudanças normativas que virão, permitindo que os setores econômicos se antecipem e se adaptem.

A UE declarou que fará uso de seu peso econômico e geopolítico para promover a diplomacia do “Pacto Ecológico” em fóruns multilaterais políticos, econômicos e ambientais e que irá colocá-lo como prerrogativa para a assinatura de acordos comerciais bilaterais e multilaterais. Além disso, todos os produtos, sobretudo químicos e agrícolas, introduzidos no mercado europeu “devem cumprir integralmente a regulamentação e as normas pertinentes da UE”, inclusive para “reduzir a contribuição da UE no desflorestamento e degradação […] a partir de medidas para evitar ou minimizar a colocação de produtos, no mercado europeu, associados ao desflorestamento.”

Com o anúncio da Estratégia Da Fazenda ao Prato em maio de 2020, já é notada uma mobilização da cadeia do agronegócio europeu para adequarem-se às iniciativas anunciadas e às Diretivas que virão, visando oferecer produtos que serão indispensáveis para o cumprimento das novas regras, para o aumento da produtividade e para mitigação do impacto aos recursos naturais. A título de exemplo, enzimas que reduzem emissões de gases de efeito estufa provenientes do processo digestivo do gado e serviços de tecnologia para aplicação eficiente de nutrientes no solo são um dos muitos produtos agrícolas que estão sendo desenvolvidos.

Tais diretivas terão também impacto na produção estrangeira, principalmente brasileira. O Brasil, com sua atual imagem na Europa fortemente associada ao desmatamento, deverá ser objeto de minucioso escrutínio dos produtores locais (já tradicionalmente refratários a aberturas do mercado europeu), e dos próprios consumidores europeus, além de enfrentar dificuldades frente a uma legislação socioambiental mais severa (que, na prática, tentará impor barreiras comerciais). Na França, grupos de distribuição como Carrefour e Casino têm sido pressionados para que adotem sistemas transparentes de rastreabilidade dos produtos que vendem.

No que tange às características gerais do setor agropecuário brasileiro, é correto dizer que um sistema coeso para medir, reportar e verificar os impactos da atividade será cada vez mais determinante para a prosperidade do negócio e para valorização das empresas e produtores que pretendem acessar o mercado europeu.

Nesse sentido, os participantes da cadeia agropecuária terão que aprimorar seus mecanismos de controle e mensuração, adicionar transparência às suas práticas e estarem sujeitos à verificações periódicas de governos, compradores, consumidores e sociedade organizada. Para assegurar que o produto atenda aos requisitos de desempenho socioambiental, por exemplo, será indispensável a rastreabilidade do produto desde seus fornecedores; a adoção de certificações (por exemplo de manejo florestal, a Forest Stewardship Council – FSC, e a de agricultura sustentável, a Rainforest Alliance Certificate); a condução de due diligences para identificar práticas non-compliance; e uma avaliação de impacto sobre o uso dos recursos naturais visando progressiva melhoria dos indicadores. Ilustrativo dessa necessidade foi o estudo recém publicado, na revista Science, de que aproximadamente 20% das exportações brasileiras de proteína e soja são provenientes de áreas desmatadas ilegalmente.

A adaptação aos novos padrões de desempenho socioambiental, definidos unilateralmente pela União Europeia, poderá ser aproveitada por meio de uma “onda verde” de oportunidades no Brasil, alavancando pesquisa e desenvolvimento. Não se pode perder de vista que a União Europeia é a primeira origem de investimentos estrangeiros diretos no Brasil. Com 450 milhões de habitantes, o bloco europeu possui capacidade de consumo inédito no mundo, ficando atrás somente dos EUA e à frente da China em termos de PIB, com 18,2 trilhões de dólares. O Brasil, 9o maior exportador para a Europa, viu suas exportações aumentarem em 17% em 2020, ao longo dos últimos 14 anos, e detém um superávit de quase 5 bilhões de dólares nas relações comerciais com o grupo.

Governo e setor privado podem, por exemplo, liderar cadeias estratégicas, como a chamada “descarbonização da agricultura”. Isso porque o Brasil é o 2o maior emissor de gases de efeito estufa do mundo para atividades provenientes da agropecuária, emissões principalmente do processo digestivo do gado, do uso de fertilizantes nitrogenados e do manejo de solos agrícolas. Já com relação a mudanças no uso da terra (desmatamento, degradação dos solos), o Brasil é o 3o maior emissor, notadamente pelo desmatamento na Amazônia e no Cerrado.

A partir das Diretivas que a União Europeia pretende impor, as oportunidades serão das mais variadas possíveis – por exemplo, para desenvolvimento de uma alimentação animal que substitua a soja proveniente de áreas desmatadas (a UE projeta até mesmo financiamentos dedicados à pesquisas para uso de insetos na alimentação animal); e o desenvolvimento de enzimas que reduzam as emissões de gás metano pelo processo digestivo do gado. Outro campo promissor é o da agricultura de precisão, podendo o Brasil ser um celeiro global das chamadas agritechs (ou startups do agro). Diz a Estratégia Da Fazenda ao Prato que a meta de redução do desperdício (ou excesso) de nutrientes será de pelo menos 20% até 2030, criando uma demanda para serviços de tecnologia no campo.

Para essa transição necessária na agricultura, a Estratégia da Fazenda ao Pasto anunciou um apoio financeiro por meio de um fundo específico. O Horizon Europe, o novo programa de incentivo ao desenvolvimento de pesquisa e inovação da União Europeia, trará um aporte de 100 bilhões de euros (aproximadamente R$ 650 bilhões de reais), dividido em 5 missões, das quais 4 estão diretamente relacionadas às mudanças climáticas. Uma delas é de interesse particular ao Brasil, pois pretende financiar pesquisas e inovações com países parceiros para preservar o uso do solo para a produção alimentícia – um recurso natural essencial para a produção agrícola. A Europa já é uma referência no setor, pois os Países Baixos, país-membro do Bloco, mesmo 200 vezes menor que o Brasil, é o segundo país exportador agrícola do mundo, graças a tecnologias que otimizam a utilização do seu solo, atrás apenas dos Estados Unidos.

As oportunidades são sedutoras, mas cabe alertar para o risco de um aprofundamento das desigualdades no campo e para o risco de pequenos agricultores não terem acesso aos recursos, tecnologias e boas práticas necessárias para participarem dessa nova cadeia do alimento. Um protagonismo maior do Estado é essencial nesse aspecto.

Olhando para a resposta brasileira a essa nova configuração geopolítica dos mercados, vemos pouco ou quase nenhum entusiasmo por movimentos que possam tornar o País protagonista de boas práticas sustentáveis na área ambiental. Está claro que a reação necessária deve vir também do Executivo e do Legislativo.

Ressalvadas as reações positivas que começam a surgir em alguns setores econômicos (preocupados com a depreciação de ativos e o risco de falta de acesso a mercados) e a contribuição de entidades organizadas, universidades e um grupo de empresas de vanguarda, falta protagonismo por parte de autoridades e entidades públicas para liderarem, internamente, uma transformação na cadeia agropecuária e, externamente, para reposicionarem o Brasil com legitimidade para influir em negociações internacionais (por exemplo, no acordo comercial UE-Mercosul).

Muito embora exista um esperançoso conjunto de iniciativas legislativas sobre o tema, nenhum dos Projetos de Lei atualmente em curso possuem mecanismos sólidos, de aplicação prática imediata, que possam dar largada a uma verdadeira corrida verde, pró-clima, brasileira. Pelo contrário, dependem ainda de muita atividade legislativa, intensos debates e de regulamentação para se tornarem efetivas normas de controle, de desenvolvimento de políticas públicas concretas ou de concessão de benefícios e estímulos aos setores produtivos. Estamos, de fato, longe do tema.

Diante desse quadro, lideranças da Câmara dos Deputados passaram, recentemente, a articular uma resposta legislativa a partir da priorização de um conjunto de projetos de lei. De autoria do Deputado Alessandro Molon, o PL 3961/2020, por exemplo, declara o estado de emergência climática, estabelecendo como meta para a neutralização das emissões de gases de efeito estufa no Brasil o ano de 2050 (o que corresponderia à meta do Acordo de Paris para os países desenvolvidos). Já o PL 7578/2017, do Deputado Zé Silva, busca “monetizar” a preservação de áreas verdes através da emissão de títulos semelhantes aos créditos de carbono – apesar de bem-vinda, a proposta não tem sinergia com o funcionamento do mercado internacional de carbono, limitando o potencial da iniciativa. Paralelamente, outros Projetos de Lei visam o recrudescimento das penas para os crimes ambientais, mas vêm acompanhados de certo ceticismo, tendo em vista a atual incapacidade administrativa de fiscalizar e punir práticas ilegais (são eles, o PL n.º 3337/2019, do Deputado Rodrigo Agostinho, e o PL n.º 4689/2019, do Deputado Zé Vitor).

O Brasil também foi alvo de recentes reivindicações, principalmente vindas de grandes empresas, para implementação de políticas de proteção ao bioma amazônico e anúncio de ações voluntárias em prol de uma agenda verde (por exemplo, as lançadas em conjunto pelo Bradesco, Itaú e Santander). Esse fato fez com que o Governo prorrogasse a operação Verde Brasil, cujas ações são coordenadas diretamente pelo vice-presidente Hamilton Mourão. Outra medida governamental, dialogada pelo próprio presidente Jair Bolsonaro, em 2019, através do Plano Plurianual, foi o compromisso de nos próximos 3 anos reduzir em 90% o desmatamento e os incêndios ilegais em todos os nossos biomas.

Contudo, são iniciativas que não estão surtindo efeito, conforme dados amplamente divulgados sobre o desmatamento e focos de queimadas. Ao nosso ver, iniciativas somente de fiscalização e punição não estimulam, como deveriam, as boas práticas ambientais e o avanço da pesquisa e desenvolvimento.

Temos visto, no mercado financeiro, uma tendência de alta na procura por fundos verdes e de papéis de empresas que incorporam em sua governança a preocupação socioambiental. Embora ainda incipiente, a expectativa é de que gestoras e instituições financeiras passem a incluir mais opções na carteira e ofereçam alternativas desse segmento para investidores na medida em que as discussões pró-clima passem a ser priorizadas. Em um cenário de médio a longo prazo e de progressiva implementação de boas práticas ambientais, sociais e de governança (a chamada ESG), quem sabe as green chips de hoje não serão as blue chips de amanhã.

A “euro dependência” na implementação de uma agenda pró-clima e pró-ambiente, associada ao comportamento do Brasil em não liderar um movimento internacional de valorização das boas práticas ambientais, custará ao País perda de oportunidades de desenvolvimento interno e um longo processo de reversão reputacional. Além de poder trazer sérios impactos às exportações brasileiras por meio de bloqueios comerciais. Internamente, a agenda precisa ganhar corpo, inclusive para que pleitos legítimos do Brasil sejam colocados nos fóruns de negociação para definição de regras de transição, períodos de adaptação e formas de cooperação para pesquisa e desenvolvimento.

Autores:

Lucas Mastellaro Baruzzi é advogado (PUC-SP), mestrando em Políticas Públicas (King’s College London), mestre em Direito (USP), e cientista político (USP). Atua com políticas públicas e relações governamentais.

Jeferson Manhaes, especialista na intersecção entre Inovação e Sustentabilidade, mestre em Relações Internacionais (Sorbonne), mestrando em Ecoinovação (Paris-Saclay), possui longa experiência internacional, atuando atualmente na co-criação de soluções que impactam tecnologia e meio ambiente.

Thiago Munhoz Agostinho é advogado (PUC-SP), especialista em Direito Tributário (FDUSP), sócio de Buccioli, Braz de Oliveira, Agostinho Advogados Associados. Atua em temas regulatórios, assessorando empresas, principalmente italianas, de grande, médio e pequeno porte.

Artigo publicado originalmente no Portal Estadão

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Encarregado pelo tratamento de dados pessoais no Brasil e o famoso ‘DPO’ europeu

Diante da iminente entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/18 – LGPD) que aguarda a sanção do Executivo, chama muito a atenção no feed de notícias das redes sociais e outros meios de comunicação dos escritórios jurídicos e consultorias, muitas ofertas, algumas delas até “patrocinadas” oferecendo cursos de como virar um DPO (Data Protection Officer) no Brasil. Curiosamente a lei brasileira não fala expressamente sobre DPO, em verdade o termo é uma designação estrangeira fixada pela General Data Protection Regulation (EU GDPR). Muitas questões surgem, afinal DPO e encarregado são profissionais semelhantes? Há espaço para inovar e flexibilizar o campo de atuação deste profissional da proteção de dados no Brasil?

Vale lembrar que muitas questões técnicas da LGPD ainda não foram definidas, inclusive a lei atribui esta competência para a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) – recentemente estruturada como órgão de governo – , como no caso da definição das hipóteses de comunicação e uso compartilhado de dados entre pessoas jurídicas, ou ainda acerca da possibilidade de definir as atribuições e hipóteses de dispensa do encarregado. Hoje, portanto, não se sabe ao certo quais são os requisitos ou características mínimas necessárias para exercer as atribuições do encarregado no país.

Devemos aguardar a regulamentação pela ANPD? O mercado sinaliza para outra direção e indica que o espaço em relação à atuação do encarregado é plural e em construção, o que não implica necessariamente em importar e repetir as experiências estrangeiras. É possível defender uma atuação específica deste profissional considerando as particularidades da sociedade brasileira, na qual parcela da população ainda enfrenta seríssimos problemas de acesso à banda larga e aos distintos serviços públicos e privados disponíveis na rede, adiciona-se ao cenário a dificuldade de assegurar na prática as liberdades civis nesses ambientes, como a própria privacidade. Este é um debate que a ANPD deve levar adiante e consultar a comunidade no momento de elaborar as normas complementares, além é claro de evitar os processos de captura regulatória.

Do ponto de vista prático, existem boas razões (jurídicas e técnicas) para a nomeação de imediato do encarregado no Brasil – a exemplo de alguns países sul-americanos como é o caso de Uruguai, que recentemente ditou a Resolução 44/020 de 21 de julho de 2020. Primeira razão decorre do próprio texto da LGPD, que estabelece uma série de obrigações para as empresas controladoras dentre as quais se destaca a nomeação do encarregado. A LGPD define a figura do encarregado como o responsável pela orientação sobre o tratamento e o monitoramento da implementação de medidas protetivas aos dados pessoais, indicado pelo controlador e que atua como canal de comunicação perante a ANPD e os titulares dos dados. Como intermediador desta comunicação, o encarregado precisa compreender as demandas de todos os lados para propor e orientar os colaboradores, funcionários e contratados da empresa sobre a melhores práticas a serem tomadas para viabilizar o tratamento de dados pessoais. A segunda razão derivada da primeira é que o encarregado opera como um dos principais mecanismos para a efetiva mudança cultural de fundo pressuposta pela legislação no ambiente corporativo.

Tal avaliação é muito importante para o profissional que pretende avançar na formação no campo da proteção de dados e privacidade, sobretudo diante de tantos cursos disponíveis no mercado que já tratam sobre DPO. Para além de apresentar as práticas estrangeiras, será que estamos preparados para ensinar e discutir os desafios locais ao implementar uma legislação tão importante?

A compreensão dogmática e técnica da segurança da informação precisa estar vinculada ao contexto social da pandemia que enfrentamos e dos problemas dos sujeitos subintegrados ao sistema jurídico no país, que lida diariamente com os efeitos de restrição de liberdade tendo em vista a incapacidade estatal de cumprimento e proteção dos dados. Basta pensar no caso do mecanismo implementado para o pagamento do auxílio emergencial da Caixa Econômica Federal, que exigiu como regra geral o cadastro por meio de aplicativo e, posteriormente, a própria empresa pública teve dificuldades de implementar o auxílio. O resultado foi o bloqueio de 1.303.127 milhão de cadastros por possíveis fraudes diante da operação de hackers. Muitos necessitados ficaram sem o atendimento devido e tiveram seus dados expostos a partir da implementação de medidas pelo governo. Este caso revela que a tarefa não é fácil para ninguém, o que reforça a importância do papel do encarregado na sociedade brasileira para além da sua expertise técnica e jurídica.

Não obstante às discussão apresentadas sobre a formação de encarregados no país, é possível propor também múltiplas configurações em relação ao perfil deste profissional diante dos mercados. O encarregado pode ser sim designado dentro da mesma empresa, por exemplo, vinculado ao corpo diretivo, ao CEO, ao chefe do departamento do TI, de RH, uma pessoa física, mas também pode ser um terceiro externo, fora da empresa, seja pessoa física ou jurídica. Esta decisão vai depender dos interesses do controlador, responsável por nomear o encarregado. Percebe-se, assim, que esta variedade é uma contribuição muito interessante para o desenvolvimento da trajetória desta nova profissão no Brasil. Aliás, a depender do volume da demanda e do porte da empresa, é possível cogitar como já acontece com a GDPR que um grupo de empresas aponte um único DPO para representá-las. Às vezes as tarefas são tantas e diversas que, inclusive, pode ser necessário ter um grupo de profissionais em rede que ocupem esse lugar, especialmente se a empresa tiver atividades em outros países. Não existe uma única configuração ou modelo a ser seguido.

Uma atenção final deve ser enfatizada neste processo de escolha de um encarregado já que é imperioso evitar ao máximo possíveis conflitos de interesse no desempenho das atribuições dentro da empresa. Afinal, este profissional deve se manifestar de modo imparcial em relação ao monitoramento e implementação da política de privacidade, além é claro de conseguir avaliar a licitude das atividades de tratamento de dados sem interferência da empresa. Logo, o exame da integridade, preparo técnico e do elevado nível de ética profissional pressuposto deve ser colocado à mesa na hora de decidir e identificar um encarregado.

Considerando as características de destaque que devem ser observadas ao nomear um encarregado de proteção de dados, entendemos que o profissional deverá conseguir conhecer em profundidade as atividades de tratamento de dados realizadas pelas empresas, ter noções da atividade econômica da mesma, e entender o sistema de segurança da mesma por um lado. Assim como se comunicar facilmente com os titulares e com a Autoridade, de modo a ser capaz de responder em tempo hábil possíveis solicitações dos titulares ou autoridades locais. Isso porque a habilidade em responder de maneira eficiente a tais solicitações está diretamente relacionada aos princípios de livre acesso (art. 6º, IV) e da transparência (art. 6º, VI) trazidos pela LGPD.

Diante das importantes tarefas que este profissional desempenha na sociedade, inclusive em razão das atribuições legais, é suficiente compreender as sinalizações do mercado e apostar no exame interno das reais necessidades e possibilidades de cada empresa para proceder com a escolha. É o caso de admitir a atuação de diferentes encarregados para atender as diversas atividades econômicas dependentes de tratamento de dados pessoais.

Artigo publicado originalmente no Portal Estadão

Autores:

Flavia Meleras Bekerman é especialista em Direito Digital, Proteção de Dados e Privacidade

Marco Antonio Loschiavo Leme de Barros é consultor do BFAP Advogados e professor da Universidade Presbiterana Mackenzie

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